Capítulo 25 – A Travessia

Amanhecer, sobre o rio, da margem sul. Suspenso o tempo num limbo de céu e águas de azul cinzento, fundidos em poalha de anil, suspensos os barcos ao longe, revelando o horizonte.
Águas de prata batida, vidro martelado, cobre e latão, lava.
Laranja incandescente nascendo, definindo os limites da distância, lançando reflexos e fogo sobre a ondulante e líquida superfície, até atingir a inefável luz, quase tangencial ao sol, impossível obliquidade.
Depois os violetas e novamente o azul, agora profundo e verde, já sob o disco amarelo, pêndulo do tempo sobre.
Marcado o começo da vida.

De vela bem esticada ia a canoa inclinada, sobre o Tejo, deslizando rápida em direcção à barra. Nela, feliz, uma vez mais cumprindo a antiga e eterna paixão, Luís sentia na face sardenta os salpicos, deixando o vento amar-lhe os cabelos.
-“Vento sudoeste, mansinho e panga, é de tremer dele, quando se zanga.
Luciana, encostada à amurada do barco, penetrava de encanto a paisagem, voando rasante a imaginação sobre o Tejo, os olhos sobre a ponte, para as nuvens no poente, em tons de cinzento forte. Queria ver de um único olhar Lisboa, todos os becos e encostas, em mágicas nuances de um esbatido ocre, povoado de estalidos de asas de pombas. A sólida estrutura do antigo barco parecia fazer amor com as ondas, entre murmúrios líquidos e gritos de gaivotas.
-“Horizonte puro, com fuzis brilhando, terás dia brando, com calor seguro.
A outra margem, o levantar do olhar, a planura inquieta do Mar da Palha, os barcos lentos. Noutra vista, sob as nuvens o errante trajecto de gaivota, ou um lento subir de avião distante no azul também cinzento forte.
Que intensa a sensação da globalidade destas imagens, ou melhor, da interpenetração, diálogo, destas com os seus sentidos! As descobertas, revelações, que aqui sempre tivera, na travessia do seu amado rio, este largo rio, Tejo de seu nome pleno de mistério, descendo, rolando, espalhando-se pelas planas margens, tocando de ternura os seus amantes, transformando-os em molhados navegantes de sonhos.
O velho marinheiro acompanhava-lhe o encantamento total pelo brilho dos olhos e pelo prazer dos lábios, sorvendo pelas narinas o límpido e perfumado mistério de todos os mares.
-“Miragem que espante, vento de levante.
Há já alguns anos descera sobre a bela e reclinada urbe, planando primeiro sobre os seus líricos telhados, luminosa paixão de todos os seus pintores, mergulhando no encanto das vielas de Alfama, pousando sobre o seu coração de antigos sons, e a espera deste encontro se alongara na demora.
Todavia, a incerteza se questionava: se decerto captara o seu mistério criador ou se, cativa dos seus encantos se quedara, inerte e contemplativa. De onde melhor ponto de vista lhe teria dado a perspectiva totalizante? De cima, descendo dos céus sobre algumas vetustas casas, ou daqui, no meio do rio?
Aquele jovem louro, com ar de andarilho e vestido “à hippie”, espaçadamente recebia explicações do marujo, a quem tinha parecido estrangeiro, holandês ou coisa parecida…
-“Nuvens finas, sem ligação, bom tempo, brisas de feição.
Explicava correntes e ventos, cuidados e marés, saber de experiência feito numa vida sobre a móvel superfície de amplos horizontes, irmanado com a sua natureza líquida, sentindo-lhe as variações do corpo com calma e coragem, trabalhando-a com os dedos cheios de ritmo e de poética magia em calmas cadências, sem pressas porque inexorável, tal como um pôr-do-sol o é.
-“Sol posto ledo, com claro ao norte, andar sem medo, que estás com sorte.
Luís certamente traria aproximações às ideias procuradas, formando em ambos o dipolo deslizante sobre o mar de conceitos e de imagens, suspendendo e acelerando-lhes o tempo, encurtando as arestas da expressividade, despoletando clarões, fazendo surgir sínteses de instantâneo fulgor.
Acende-se espontânea em Luís a imagem do rosto de Luciana, lúcido e determinado, ainda que toldado na sombra das dúvidas, coadas pelas espessas lentes dos seus óculos. Era sempre através desses cristais redondos que lhe via a fascinação dos olhos, saltitando sobre as alegrias cromáticas.
-“Nuvens aos pares, paradas, cor de cobre, é temporal que se descobre.
Descoberta a face de Luciana um dia ao findar da madrugada sobre o verde de um relvado, sob o diálogo lento dos dedos calmos, evento em que Luís passara a situar a origem do binómio das suas vidas.
Ela lembrava-se do que ele lhe dissera um dia, de olhos espantados, enfiando, no seu inimitável gesto, os dedos na cabeleira de poeta, que nem mesmo sabia como lhe nascera essa clarividência.
-“Brilhante nascente que nuvens desfaz, reúne a companha que bom tempo nos traz.
Era sempre ele quem, depois de alguns dias de pensamentos nebulosos, lhe vinha trazer a clareza, a conclusão, em surpreendente perplexidade, por nunca antes ter pensado nisso.
Encorajava-a sempre, via como era importante o objectivo a que ela se tinha proposto, não apenas uma questão de obstinada afirmação pessoal.
-“Depois da chuva, nevoeiro, tens bom tempo, marinheiro.
Luís lembrava-se agora da sua última conversa, em que Luciana desfiou com a habitual persistência as dificuldades da incompreensão dos colegas, que resistiam não só passivamente à integração de uma pessoa que exigia o direito de também ser diferente, sentindo-a como a intrusão da desarmonia no sereno mundo do culto do Belo.
-“Se tens vento e depois água, deixa andar que não faz mágoa.
Luciana, com mal disfarçada angústia, dissera-lhe que o mais difícil não consistia no estudo da História da Arte, ou no aprendizado das técnicas de expressão plástica, mas sim na passagem ao domínio dos materiais, na sempre presente e inexorável muralha dos seus contraditórios músculos, em que no entanto perplexamente encontrava as plausíveis razões da própria originalidade.
-“Vaga ao revés encrespada, vai dar-te o vento saltada.
Da vida, Luciana queria tão-somente a necessária complexidade da realização pessoal, pelo que não prescindia de aproveitar as oportunidades que se lhe oferecessem, habitualmente escassas.
-“Se entra por terra a gaivota, é porque o temporal a enxota.
Luís sabia que Luciana exigia, apenas e simplesmente, os mesmos direitos, por isso dizia-lhe que nem pensasse em rejeitar qualquer hipótese eventualmente surgida.
Assemelhavam-se a uma simbiose de análise e síntese, por isso era em conjunto que alcançavam a paz e também o desassossego, sonhos impossíveis em vidas solitárias, tornados vivências musicais de luz e alegria.
-“Vento contra a corrente, levanta mar imediatamente.

Quis voltar mais vezes à inspiradora viagem, inspirar a humidade salgada e sentir o balanço da barca, o gemido do cordame, tactear a tensão da vela, enfunada de generosa energia, pura irmandade entre homens e Natureza, madeira e pano em rigor talhados, cristais da seiva do trabalho.
-“Foi-se o nordeste, turvou-se o azul; fugiu do norte, foi para o sul.
Luciana tinha-lhe colocado a questão dos pontos de vista, das perspectivas cromáticas da cidade que amavam, por isso Luís de novo a trouxe, no encantatório percurso da velha canoa. Novamente os acompanhava o velho marinheiro:
-“Manhã com arco mal vai ao barco; se à tarde vem, é pra teu bem.
Apurar a vista para os pontos de referência, marcos da paisagem costeira, desde a Cidadela de Cascais, Forte Velho, Cai Água, Ponta da Rana, Santo Amaro, até dobrar a Ponta da Lage, em planos sucessivos, ao encontro da urbe de Ulisses.
Na barra de Lisboa, agora Luciana encontrava o outro ponto de perspectiva, entrando na beleza insuspeitada dos alinhamentos desde a foz do Tejo, caminhos que conduziam musicalmente àqueles reflexos de telhados húmidos. Alinhamento de S. Julião pelo Palácio da Ajuda.
-“Se ao vale a névoa baixar, vai para o mar. Mas se p’los montes se atrasa, fica em casa.
Compreendia agora porque sempre tinham as paisagens marinhas sido motivo de fascinação para os pintores de todos os tempos. E pensar que este marinheiro-poeta – como muitos de nós – há muito trazia nos olhos todo este fulgor, passeando-o em pescarias e outras fainas, da Golada à Guia por Santa Marta, cruzando infinitas vezes o eixo da Barra, deixando para trás a Torre do Bugio, ao encontro dos Cachopos.
-“Mas se está claro, cheio de luz, haja alegria, que o tempo é de truz!” – explicava-lhe sem aparência de entusiasmo aquele homem, sóbrio de palavras, de sabedoria misteriosa e rosto duro, de cuja imagem Luciana viria a plasmar espantosa expressão cromática, povoada de gaivotas em salgado marulhar.
-“Limpo horizonte que relampeja, dia sereno, calma sobeja.
Aprendia onde eram no Tejo as correntes mais fortes, a montante da cidade próximo das margens, mais do que a meio em que corriam sobre a direita as águas, encontrando-se com as irmãs, em bailadeiras…
-“Quando ao sol-posto o norte é puro, tens bom tempo seguro.
…e os caprichos das massas líquidas saindo ao encontro do mar, da planitude.
-“Rosado sol-posto, cariz bem disposto.
Mas também:
-“Quando quiseres mentir, fala do tempo que há de vir.

Olhando para o indefinido, para o lado da barra, para onde já o Álvaro de Campos tinha ido em Ode ao encontro dos piratas, Luciana, marítima e líquida, distante e amanhecida, amando veleiros e barcos de madeira, sentia chamar as águas, sabendo agora porque para o mar correm os rios, humildes obreiros da sua grandeza.

Capítulo 24 – Génesis

Soubemos, num dia de Junho de 80, que virias ter connosco, que nos trarias a tua desejada presença.
Sentimos a inacreditável maravilha de já existires, cristal do nosso amor.
É muito difícil dizer-te agora a vida, será contigo que o iremos aprender: dizer a verdade, enfrentados na branda agressão, voltados nos dias feridos, lançantes em repetido.
Quando a mão de falar era muda, chamei-te amigo e pensei que bastasse. Abracei a fala, esperando alongar a terra. Abri o gesto, calado estendido em laconismo. Pensava que o braço e a palavra trouxessem à mão o amigo.
Percorridos corpo e mar, enchi de vento o meu bote, sem vela que voasse rasgando as águas. Esperava ver nascer o mastro na minha pele emproada, sem que navegasse à solta. Gritava, por não ter pressa de chegar ao porto, cansado dos estafados conselhos de me perguntar, amedrontando os fantasmas da minha vacilação se já queria terminar a viagem.
Procurei-te na mais humilde acção, pelas ruas, de canção nos lábios. Mais do que em ti, as diferenças da leitura, revirada nos pólos dos sete mares, das sete mil e quinhentas partidas do pensamento.
Assim foi que fui sabendo fazer-te.
Estávamos no ser indeterminado de sermos as árvores livres, importados com tudo o que não fosse importante.
Ferir o vento, levar a ver o espanto defrontado à descoberta das janelas por abrir. Romper a sebe, saltar o fosso.

Capítulo 23 – Todos

Caminhando pelo cais, Domingos fala com ternura das armas do seu ofício, plainas, machadinhas e formões, meios de transpor à madeira as formas da Arte.
Foram todos jantar à casa deste amigo, à beira do rio, perto do estaleiro, onde ele deu asas à alegria, na música da sua concertina.
Não a tinha levado no barco, por isso ficaram surpreendidos com os sons que dos dedos de Domingos agora fluíam.
Ela, a outra música, a do mar, era o contraponto e a inspiração desta, a do cais. Uma, a das ondas e do vento nas velas e cordame. Outra, feita de suor e gritos, de pés descalços e de amor.
Dançaram os amigos e depois falaram dos seus sonhos e projectos.
Álvaro Urbano esboçou o conceito de “Neo-Manuelismo”, a seu ver ainda insuficientemente caracterizado, ambicionando fazê-lo, quiçá sob a forma de ensaio…
Wirsung projectava escrever um romance, com base nas gravações das viagens.
Luís escreveria, nessa mesma noite, poemas inspirados nas sensações da navegação.
Luciana ambicionava, partindo das imagens fotografadas, fazer telas de grande beleza e força, isto é, realistas, que viessem a ser os “Novos Painéis de São Vicente”.
Henrique, ex-Lovat-Erin, sempre acompanhado por Ana, continuaria a ensinar, qual Novo Infante, quem queira aprender a ser Navegador.

Capítulo 22 – A Escrita

Naquele dia, os amigos debatiam as suas diferentes concepções da escrita:
Wirsung analiticamente iniciou:
- É verdade que por vezes questionamos o valor do que escrevemos, indagando-nos da força destes comprimidos de pensamento, do seu conteúdo em miligramas de entendimento. Desejando escrever algo de definitivo, imaginamos ilusoriamente transformar, principiar algo de novo. Assim, a escrita poderá, apenas, ser a materialização dos sonhos imperfeitos – notem que resisto à tentação de dizer “sempre”…
Álvaro Urbano, muito sucinto e minimalista, resumiu:
- É coisa fugaz e irremediável, portanto histórica.
Ana receitou, da sua experiência de vida:
- Titubeando no mundo do Intervalo, o ideal é deixar solta a Imaginação, deixar correr livre a palavra, escrever “em bruto”, directo a seguir ao pensamento.
Luciana criticamente pincelou:
- Circular pelos traços das avenidas literárias, cercadas nos campos da visão estreita dos “ismos” da moda, em escrita linear e fechada num só plano, é cavar o fosso dos intelectuais-intelectualistas, a quem o povo nunca dará o seu entendimento.
Domingos trouxe da bancada o exemplo:
- É como madeira trabalhada, pronta a ser olhada, tocada e cheirada, antes de ser arte ou utilidade.
Henrique, de olhos líquidos:
- No fulgor da palavra pura, deixamos fixar o nosso pasmo de encantamento.
Luís, de olhar iluminado:
- Na poesia da brevidade, deixamos correr o fluxo vivo de quotidianos inexplicados.

Capítulo 21 – O Que Nos Rege

Agora é Ana que fala, da ciência da interpretação dos barómetros:
-“Quando, depois de longo período de bom tempo, desce precipitada e continuamente, é sinal de chuva. E descendo sem que haja mudança no estado aparente da atmosfera, quanto maior for o espaço de tempo entre a descida do barómetro e a chegada da chuva maior será a duração do tempo chuvoso. Se, pelo contrário, durante o tempo chuvoso e de já longa duração, começar a subir lenta e seguidamente, é certo que voltará o bom tempo e que durará tanto mais quanto maior for o intervalo entre a sua chegada e o princípio da subida barométrica.
Henrique escutava atentamente a sua companheira. Não pôde deixar de sorrir ironicamente desta aplicação dos intervalos…
Ana continuava, olhando para Henrique, olhos como de mãos dadas.
-“Se a mudança de tempo segue imediatamente o movimento da coluna barométrica, essa mudança terá curta duração. Se sobe lenta e continuamente durante dois, três ou mais dias, anuncia bom tempo, ainda que não cesse de chover durante esses dias e vice-versa; mas se sobe durante dois ou mais dias, ainda que chova, e depois desce, logo que chega o bom tempo, este durará muito pouco e vice-versa.
Wirsung estabelecia na sua imaginação um paralelismo desta meteorologia com os processos psicológicos.
Aquele amor tinha sobrevivido a prolongados temporais, protegido pelos seus cuidados.
-“Na Primavera e no Outono, a descida rápida pressagia vento. No Verão, estando tempo muito quente, denuncia trovoada. No Inverno, depois das grandes geadas, o rápido abaixamento anuncia mudança de vento e chuva. Se pelo fim do Outono, depois de tempo chuvoso e ventoso muito prolongado, o barómetro se eleva, há indício certo de mudança de vento e, às vezes, queda de neve. Nunca se devem interpretar as oscilações rápidas do barómetro como presságio de tempo seco ou chuvoso de longa duração. Estas previsões são dadas, exclusivamente, pela alta ou baixa que for lenta ou contínua.
Luís toma a palavra, demonstrando a aprendizagem:
-“Se ao mesmo tempo que se acentua uma alta barométrica a temperatura aumenta, é de esperar um golpe de vento da zona tórrida. Se, pelo contrário, o termómetro baixa, o vento virá das regiões polares. Na aproximação duma tempestade giratória, o termómetro sobe rapidamente alguns graus, tornando-se o calor asfixiante. No decurso de uma tempestade ordinária, a temperatura baixa três a quatro graus, nos dias que a precedem e seguem, ao mesmo tempo que uma chuva contínua se acentua. No Inverno, se o termómetro sobe quando neva, a neve transforma-se em chuva; se baixa quando chove, a chuva transforma-se em neve.
A liberdade, conhecimento da realidade, em constante transformação.

Capítulo 20 – Medindo Águas

-“Na extremidade mais grossa do prumo de mão há uma cavidade que se enche de sebo, para trazer uma amostra do fundo.
Todos ouviam, em silêncio respeitoso, como se podia medir a profundidade das águas:
-“A linha é igual à de barca e gradua-se da seguinte maneira: faz-se uma mãozinha num dos chicotes, para encapelar na alça do prumo e, do seio da mão da linha, mede-se a primeira braça, ou um metro e oitenta e três, que se marca com um bocado de merlim, onde se dá um nó; a segunda com dois nós, a terceira com três nós, a quarta com quatro nós, e a quinta com um coiro. Marcam-se novamente um, dois, três, quatro nós, na sexta, sétima, oitava e nona braças, e a décima com uma pinha de anel. Da décima primeira à décima nona, a mesma marcação da primeira à nona e, na vigésima, duas pinhas.
A Álvaro esta marcação lhe faz lembrar o cordame da arquitectura Manuelina, a qual neste preciso instante decide fazer renascer nos seus futuros projectos.
-“A milha marítima adoptada como unidade de distância é de mil oitocentos e cinquenta e dois metros e dá-se-lhe o nome de nó, do mesmo modo como se graduavam as linhas de barca. Com uma barquinha na ponta de um carretel, se media a velocidade do navio, com a ajuda de uma ampulheta.
O estudante observa agora a carta da Barra de Lisboa, cotejando os alinhamentos e a direcção dos ventos favoráveis com as explicações que Henrique dera:
-“Os enfiamentos da marca da Mama com a marca de Caxias, e da marca da Mama com a marca da Boa Viagem, definem um sector no qual está compreendida a parte navegável da Barra Grande ou Canal do Sul, sendo o eixo dado pelo enfiamento da Mama com os farolins do Esteiro e da Gibalta.
Wirsung, de óculos escuros, gravava o gemido das cordas esticadas e o drapejar dos panos, em som de fundo marulhado com flautas de gaivotas ao longe, à vista de Lisboa.
-“A largura deste canal, na entrada do rio, é de seis amarras, ou seja, setecentas e vinte braças. Há anos, as coroas de areia que rodeavam a Torre do Bugio deslocaram-se um pouco mais para o norte, invadindo com o seu baixo fundo o limite sul da Barra Grande. Para o evitar, convém manter-se sempre no eixo até um pouco mais adiante do que era usual e segui-lo até que a margem norte – Junqueira, Alcântara, fique ocultada pela Torre de Belém. Entrar então no Tejo livremente.
Luciana reconhecia estas perspectivas, mas o seu olhar descobria agora outras relações cromáticas, de reflexos e tonalidades, em total expansão de brilhos sobre a líquida planura.
-“A corrente da vazante chega a atingir cerca de cinco nós, quando se dá a coincidência de marés vivas com águas do monte. Normalmente, a velocidade da vazante é de cerca de dois a quatro nós, conforme as marés, sendo a corrente mais acentuada a meio do rio, por alturas de Cacilhas, e de meio rio para norte, a partir da Torre de Belém para Oeste. Na enchente, a corrente é sensivelmente mais fraca, apresentando-se com velocidades de um a três nós. Com marés mortas e águas do monte chega quase a não haver inversão da corrente, que normalmente se dá uma hora depois da preia-mar ou da baixa-mar. A duração da maré é de seis horas, havendo, por consequência, duas preia-mares e duas baixa-mares em cada vinte e quatro horas.
Domingos cita os perigos a que se deve dar resguardo.
Na margem norte os baixos de areia da Cruz Quebrada, as pedras de Caxias, os Papa-Lemes em Paço d’Arcos, Penedo Pardal, Ferraduras de Santo Amaro, Catalazete, Pedra do Sal, Almagreiro, Boca do Asno e Cidadela de Cascais.
Na margem sul o Calhau do Mar e Cabra Assada, Trafaria.

Capítulo 19 – A luz da linguagem

As luzes de um navio de vela são dois faróis, um a cada bordo, sendo vermelho o de bombordo e verde o de estibordo, mostrando uma luz ininterrupta sobre um arco de horizonte de dez quartas da agulha, colocados de forma a projectarem a luz desde a proa até duas quartas para ré do través, devendo por meio de anteparas evitar-se que o farol de um bordo seja visto do bordo oposto.
Sem semiologia não há linguagem. Nem, sem esta, comunicação, transferência e comunhão de saberes, entendimento.
-“Os navios de vela dão, como sinal de nevoeiro, um som de buzina ou de sereia, de minuto a minuto, quando amurados por estibordo. Dois sons, quando amurados por bombordo, e três sons quando navegando à popa.
Henrique ensinava agora as leis da navegação, as regras de trânsito dos caminhos marítimos, quem deve desviar, conforme vai de bolina ou com amuras a bombordo, navegue a um largo ou à popa.
Explicava os sinais sonoros para navios à vista, indicando as manobras através do número de sons curtos, e os sinais de perigo, tiros, foguetes, fogueiras, o SOS em código Morse.
Os sinais de mau tempo em lona pintada de preto, em feitio de cone, içados no lais da verga, dispostos conforme os quadrantes da bússola de onde o temporal é provável, em convencionadas significações.
Álvaro já tinha aprendido a traçar a Rosa-dos-Ventos, determinando-lhe os quadrantes.
-“Dividindo estes ao meio por outras duas linhas perpendiculares, teremos outros quatro rumos cujos nomes se formam da reunião dos dois entre os quais estão, e são os que dão o nome aos quadrantes. Dividindo ao meio os espaços que ficam entre os rumos já achados, teremos oito novos rumos, cujos nomes se formam também da reunião daqueles entre os quais estão. Dividindo ainda ao meio os espaços que ficam, obtêm-se as quartas e pelo mesmo processo, as meias quartas e os quartos.
Pairava sobre a memória dos companheiros que o ouviam a imagem das antigas cartas, com uma rede de linhas e ângulos, em arabescos entre as costas detalhadas de portos, enseadas e falésias, praias e ancoradouros.
Para Álvaro Urbano, essas evocações resvalavam para mapas de tesouros de piratas, mas resistiu ao sonho e continuou com seriedade:
-“A rosa-dos-ventos pode ser graduada de zero a trezentos e sessenta graus, contando-se a partir do norte.
Explicou seguidamente, sem qualquer ‘snobismo’, a composição de uma agulha de marear.
-“Está metida numa caixa de latão que se chama morteiro e apoia-se, por dois munhões, a uma suspensão que a mantém sempre horizontal. No morteiro estão assinaladas as linhas de fé, cuja posição deve ser rigorosamente paralela à quilha do navio.
Entusiasticamente transformado em arquitecto naval, Álvaro continuava a descrever a peça:
-“A suspensão apoia-se por sua vez a uma bacia de latão que se chama bitácula, coberta por uma cúpula envidraçada do mesmo metal, onde se colocam as luzes, e que se apoia num suporte de madeira torneada, fixado no convés por meio de parafusos.
Domingos, até então calado, entendeu ser o momento para acrescentar:
-“Existem também agulhas líquidas, cuja tina está cheia de água destilada ou água e álcool, na qual flutua a rosa dos ventos ligada a um flutuador central, conseguindo-se assim movimentos mais suaves.

Capítulo 18 – Dívida

Ana tratara de trazer para bordo um equipamento indispensável, e agora explicava aos companheiros desta barca de muitos mestres e aprendizes a sua composição:
-“A farmácia essencial compreende: bisturi, tesoura, pinça de dissecção, porta agulhas, pinça de bicos finos para a extracção de corpos estranhos, duas pinças hemostáticas, seringas e agulhas descartáveis, agulhas e sedas de sutura de vários tamanhos, algodão, compressas esterilizadas, ligaduras de várias larguras, adesivo, solução antisséptica, álcool a setenta graus, ampolas de anestésico, analgésicos, colírio, protector solar, antiácido, antidiarreico.
-“Quem vai ao mar, avia-se em terra!” – exclamou, ufano e irónico, Álvaro Urbano, sentindo-se logo em seguida bastante ridículo.
Depois de Henrique ter esclarecido quais as manobras para a recolha de um náufrago, Ana explicou ainda a técnica correcta de reanimação de um afogado.
Chapinhando em memórias que de súbito o assaltaram, o marinheiro já não a ouvia, recordando-se da longínqua planície, e do pedaço de si que nela ficara, como náufrago num pântano verde.
De olhos salgados e alma amarga, nele soava agora o tom grave e solene de uma canção alentejana:
Eu sou devedor à terra
e a terra me está devendo.
A terra paga-me em vida,
e eu pago à terra em morrendo.

Capítulo 17 – Rumos provados

Era tempo de começar a por à prova a aprendizagem de Luís. Henrique ordenava:
-“Claro a virar!
E Luís manobrava a virar por d’avante. A embarcação negou-se.
-“Mentiu a virar!
Luís manobrou de modo a corrigir a falha.
Wirsung tinha ligado o seu pequeno gravador, de grande capacidade, que sempre trazia para registo das falas, pensando imortalizar as palavras mais tarde, pela escrita.
-“Pronto, virar!
E Luís manobrava a virar em roda.
-“Caçar as velas!
Luís puxava-as bem à acção do vento.
-“Folgar as velas!
O louro aprendiz de marinheiro afastava os panos do sopro do vento.
-“Leme de ló!
Luciana fotografou Luís a pôr o leme a barlavento, orçando.
-“Leme de encontro!
Luís punha-o a sotavento, arribando.
À ordem de “Leme de revés!”, foi pô-lo do lado oposto para onde a proa ruma, andando a embarcação a ré.
Henrique deu seguimento à pedagogia, com perguntas:
-“O que quer dizer ‘o vento casseia’?
Luís:
-“Indica que o vento ronda mais para a proa, o que é desfavorável.
-“E quando a voz de manobra é ‘o vento alarga’?
-“Essa é empregue quando o vento ronda mais para a popa, o que é favorável.
-“Cheio mais, cheio menos, cheio todo?
-“São vozes para o leme, para arribar, orçar e deitar à popa, respectivamente.
-“Bem.
O gravador registou, para que Wirsung lhes dê continuidade, como tinha feito em narrativa de outra planura, tornando imorredoiros muitos termos da prática dos navegadores.
Abicar, aduchar, aguentar ao socairo, ao pairo, bordejar, cambar as escotas, aquartelar, carregar pano, coar um aguaceiro pelas testas, coca de um cabo, colher de um cabo, dar de luva, dar por d’avante, dar volta a um cabo, dar volta à amarra nas abitas, deitar fora dos rizes, deitar fora o pau da bujarrona, deitar um mastaréu à cunha, desbolinar um cabo, desenvergar pano, em árvore seca, encapelar, enfurnar, fazer cabeça, fazer de vela, ferrar pano, galindréu, pandeiro de cabo, pescar de luva, pôr de capa, querenar, rondar um cabo, safar cabos, seguir de ló, sobrar um pandeiro, solecar, tiramolar, topetar, trempe, à trinca, vento de refregas, virar de bordo.
O mudar de rumo dos filhos da madrugada.
Agora o gravador tocava Zeca Afonso.

Capítulo 16 - Ventanias

Luís sempre colhera boas inspirações poéticas das alterações da disposição da atmosfera.
"Que não se largue para o mar com sinais atmosféricos ameaçadores, com os instrumentos de observação indicando mau tempo ou um boletim meteorológico mal encarado. É preceito que a sabedoria e a prudência mandam e não há que aconselhar."
Mau tempo: aguaceiros, saltos de vento, temporal desfeito.
"Quando o horizonte se cobre de grande paredão de nuvens, de aspecto carregado, acompanhado de chuvas intermitentes, forte vento com rajadas violentas e mar agitado de grosso cachão ou escarcéus, devemos ter por certo um temporal e então atenderemos aos conselhos que se seguem, tomando em conta que a duração dos temporais é vulgarmente de três a sete dias."
Luís lembra-se bem da advertência em tom grave de Henrique:
-"O marinheiro tem, a todo o momento, de estar preparado para a luta e, assim, ao menor indício, deve, se está fundeado em mau sítio, procurar imediatamente melhor fundeadouro e, se não houver um que seja seguro, fazer-se ao mar."
Recordava os procedimentos: arriar todas as velas auxiliares; pôr prontos a agir os cabos e restante material necessário, pondo bem clara a manobra; substituir as escotas que não sejam de confiança; acaçapar os mastaréus e tesar bem a enxárcia; aprontar a manobra de rizar; pronta e safa a âncora flutuante; fechar todas as escotilhas e tapar bem tudo o que possa dar entrada à água para o interior do navio.
"Quando, na iminência de um paspalhão, que é um aguaceiro com salto de vento, há um recalmão, deixam-se todas as escotas completamente folgadas para que as velas não apresentem resistência ao entrar de novo o vento e, conhecido o seu rumo, orienta-se prontamente o pano, sem dar volta às escotas, aguentando-as na mão, sob volta, para as folgar se o barco adormecer."
Luís sabia que adormecer era ficar adornado, não se adriçando, não voltando à posição normal após uma rajada. O grande perigo era o barco receber os golpes de mar lateralmente, atravessar-se ao mar. Nessa situação, o balanço do casco é tal que se arrisca a rebentar os ovens e desarvorar o mastro. Então, há que ter a lucidez de aproveitar um dos fugazes decrescimentos da vaga, que acontecem entre três ou quatro grandes, uma ou duas de menor dimensão, força e violência.
Outras manobras aprendera Luís, como capear, que era aguentar-se de proa ao mar, e correr com o tempo.
Mas o saber principal era a escolha ajuizada entre as várias manobras, adequando a sua preferência ao tamanho e tipo de construção do barco.
Conforme o tipo, as características permitem diferentes manobras: os cheios de amuras são bons para a capa e os fracos de popa maus para a corrida.
-"Os pequenos defendem-se melhor capeando do que correndo."
Às vezes, tinha-se de aguentar fundeado um temporal, aguardando uma sota, ocasião propícia.
Foi numa dessas vezes que ficou surpreendido ao ver usar-se azeite, deitando-o pela proa, e espalhando-o uns metros em volta do casco.
Sem dúvida mais surpresos ficariam os camponeses se lhes contassem essa insuspeita utilidade do fruto oliva que viam solenemente enraizado pelas suas também verdes - mas sólidas - encostas...

Capítulo 15 - Galear

Ana contemplava Henrique sabendo já distante o esforço de mudar as rotas perdidas.
-"Sem nuvens o céu e estrelas sem brilho
Verás que a tormenta te põe num sarilho."
Ela e ele tiveram de romper com o isolacionismo, a solidão voluntária, sem sentido, rasgaram o passado da sua pele, tiveram de matar a vacilação.
-"Quando a passarada berra,
O marinheiro procura terra."
Agora o seu rosto era duro de expressões, de feições talhadas pelo sol, mas Ana conhecia bem a ternura daquelas mãos.
-"Lua à tardinha com o seu anel,
Dá chuva à noite ou vento a granel."
Wirsung recordava como tinha ficado perplexo quando ela lhe dissera, na explanada do Hotel Esperança, o que se sucedeu à fuga de Lovat-Erin, pois não acreditava, enquanto psiquiatra, que fosse possível sair daquele estado.
-"Poucos fuzis, trovões em barda,
Rumo em que o vento se alaparda."
No entanto, percebeu que ele precisava de navegações, só isso lhe traria confiança em si próprio, segurança, alegria e luz, e fôra precisamente Ana que o conseguira.
-"Volta direita, vem satisfeita.
Volta de cão, traz furacão."
Só o amor tem a força suficiente, por isso é tão necessário, para mover o inabalável, fazer renascer o que está morto.
Ana ouvia agora o que ele dizia aos companheiros, ao som de fundo das ondas e dos gritos das gaivotas, ensinando a manobra de virar em roda, que é mudar de amuras passando com a popa pela linha do vento:
-"Mete-se o leme de encontro devagar, dando salto à adriça de pique e caçando a escota grande. Logo que o vento esteja na roda, cambam as velas de proa e a retranca, que nesta ocasião já deve estar a meio. Passando o vento ao outro bordo, iça o pique e caçam as escotas de proa, mareando conforme o rumo. Com os brandais volantes manobra-se como para virar por d'avante."
Ana tinha grande prazer em sentir o movimento dessa outra manobra, mudando de amuras fazendo passar a proa pela linha do vento, por isso era a sua preferida, gostando nessas alturas de ficar na parte mais próxima do beque.
-"Atravessar é fazer parar o navio com o pano largo, de forma a só abater, e nem seguir a vante, nem cair a ré. Orça-se um pouco a perder seguimento. Depois, folga a bujarrona, aquartela a de estai, ala a retranca a meio e põe-se o leme todo de ló."
Gostava de ficar na proa, sentindo o balanço do navio, da proa à popa, acompanhando a ondulação da vaga, no movimento que os marítimos chamam de galear.

Capítulo 14 - Manobras

Álvaro anotava os lugares, trajectórias e gradações do percurso marinho, relacionando rotas nos mapas costeiros.
A parte mais saliente da proa do barco, o beque, parecia estar sempre a apontar o caminho.
Aprendia que o caminho que o navio faz no espaço de um dia é chamado singradura. Que bordada é o caminho feito pelo navio até mudar de direcção.
Tudo isto derivando dos conceitos físicos do desenho da embarcação, ligado à linha de tozamento, que é a curva que determina a configuração do navio, de popa à proa, como lhe explicou o carpinteiro Domingos. Abatimento é o ângulo formado pela direcção da quilha e a esteira do barco.
A maior ou menor inclinação do gurupés ou do pau da bujarrona, arrufamento.
Por seu lado, Wirsug analisava a terminologia náutica relacionando-a com os possíveis afectos nela contidos.
"A beijo", por exemplo, quer dizer junto, unido, muito chegado. "Faltar o fundo", quando o ferro garra. "Brandear" é folgar um pouco, arriar devagar e sucessivamente, abrandar.
Poder manobrar sem se embaraçar com as embarcações fundeadas no porto de onde se larga é "estar em franquia". À acção de trazer para dentro do navio, mais ou menos, o punho da escota de uma vela, chamam "caçar".
Mas o termo que achava mais significativo da personalização dos barcos por quem neles navega era o que usam quando o navio, metido a virar, por efeito de vaga ou má manobra, antes de pôr o pano completamente sobre, ou a grivar, pára e torna a cabecear para o bordo em que ia: - "mentir".
Como que transformada a embarcação em Universidade viva, Domingos agora substituira Henrique nas explicações, pois também ele sabia alguma coisa da lide das velas:
-"Rizar é diminuir a superfície das velas por meio dos rizes. Para rizar um latino quadrangular dá-se uma talha ou teque ao amante da forra do lado da escota e passa-se a boça ao garruncho do lado da amura. Pronto a alar, arria o pique e a boca o bastante para que os garrunchos da forra vão aos seus lugares, e ala pela talha, cujo chicote, bem tesado, dê volta ao cunho da retranca e faz-se a amura. Iça-se a boca e o pique, a ficarem bem esticadas a valuma e a testa. A manobra executa-se com o navio a filar vento, que é estar aproado ao vento ou à corrente, ou quase."
Ali a autoridade destes professores não trazia pompas cessórias, o que não é necessário para que a sintamos. Podia-se bem dizer que estes mestres não falavam "de cátedra", antes sobre o lastro seguro das mãos calejadas, que deram sabor ao vivido.
Luciana e Luís ouviam atentos as explicações daquele escultor da mistura de odores, da madeira e do sal, do vento.
-"Rizar um latino triangular. Se tem rizes, arria-se a adriça, impune-se pelos garrunchos da forra, ficando o da valuma a fazer de punho da escota. Amarram-se os rizes e torna a içar. Se não tem rizes, mete-se à antegalha, isto é, pelo lado da pena, arriando a vela e, a uma distância conveniente da pena, une-se o gurutil à valuma, pasa-se uma forte percinta de lona e por cima um botão redondo, ficando assim diminuida a superfície da vela. Iça-se e caça-se."
Também de fundear ou amarrar se faz a ciência das oportunidades:
"Se o vento e corrente vierem na mesma direcção, orça-se a pôr o pano sobre e quando o navio pára, larga-se o ferro, carregando e ferrando logo que se verifique ter agarrado o fundo. Se o vento sopra em sentido contrário à corrente, deve, na grande maioria dos casos, demandar o fundeadouro com água no bico, carregando a tempo, primeiro a bujarrona, depois a grande e por fim a de estai, de forma a chegar ao sítio onde deve largar ferro sem nehum pano largo e logo que o navio perder o seguimento, fundeia-se. O filame a dar à amarra é de três alturas do fundo. Para amarrar dois ferros, deve-se navegar com água no bico até mais além do sítio onde se quer ficar e aí largar-se um ferro. Depois deixa-se descair com a água até seis vezes a altura do fundo e fundeia-se o segundo ferro. Ala depois pela primeira amarra até metade, arriando simultanamente à outra igual filame e abita-se, o que se chama permear as amarras."
Wirsung pressente de modo difuso a semelhança das manobras de marcação com a arte de escrever.

Capítulo 13 - Cabo das Tormentas

Mestre Domingos Carpinteiro também conhecia a ciência empírica da previsão das mudanças do tempo, e com gosto recitava, como versos, essas pérolas da memória oral:
-"Vermelho nascente que pronto descora,
Tempo de chuva que está pra demora."
Como na nossa terra gostamos de ser poetas, identificando rima com verdade!
-"Sol nascente desfigurado,
No Inverno, frio; no Verão, molhado."
Pensativo, Álvaro lembrava-se da conclusão a que Luciana tinha chegado, acerca da 'Narrativa da Planície': "um mergulho na interioridade".
-"Sol que nasce em nuvens sentado
Não vás ao mar, fica deitado."
Concordara que a palavra-chave do texto era "intervalo", ou "interior". A partir dessa análise, Luciana consegui convencê-lo a uma viagem "sobre a superfície da exterioridade". Em extensão.
-"Poente nubloso, vermelho acobreado
Safa a japona, que o tempo é molhado."
Wirsung recorda o espanto de Álvaro quando concordou com a análise que Luciana fizera do seu texto.
-"Nuvem comprida que se desfia
Sinal de grande ventania."
Interessado em conhecê-la, Álvaro apresentou-lhe a turbulenta amiga passados alguns dias, numa reunião.
-"Com céu azul carregado,
Teremos o barco em vento afogado."
Foi então que ela o convidou a um passeio no Sado, talvez mais longe...
-"Foge dum céu azul aleitado;
Ou desces à câmara ou ficas molhado."
Apenas Luís estava atento às palavras do artífice, com a sua alma de poeta sintonizada nesses sons de timbre antigo.
-"Céu pedrento, chuva ou vento,
Não tem assento."
Agora Luís olhava para Luciana, lembrando-se dos primeiros tempos de angústia desdebrada, em que ela desabafava das grosserias da Escola.
-"Nuvens espessas e acumuladas,
Ventanias certas e continuadas."
Para ela escreveu todos os seus poemas, amava-a como à sua própria duplicação, em Luciana.
-"Nuvens pequenas, altas e escuras
São chuvas certas e seguras."
Agora ela tinha-se transformado naquele esteio de confiança, o centro atractivo da roda dos amigos.
-"Se grandes, correm desmanteladas,
Mau tempo, velas rizadas."
A alegria que irradiava, a polémica que gostava de fazer despoletar com radicalidades, não só verbais.
-"Castelos de nuvens sem nuvens por cima
São chuvadas certas, mesmo sem rima."
Só tardiamente reparou que se distraira dos provérbios, ou que se pusera a pensar noutras coisas, talvez como os outros, afinal, que para isso os provérbios são bons. Eram quase todos bastante sombrios, carregados de fatalismo, contrastando fortemente com as suas divagações.
-"Se um trovão seco no céu reboa,
Temporal violento nos apregoa."
Os presságios pessimistas indicam invariavelmente cautela, bom senso, a base da sobrevivência aprendida desde as primeiras trevas das odisseias dos povos, em todos os continentes e margens.
-"Se vem chuva e depois vento
Põe-te em guarda e toma tento."
Só excepcionalmente se declara o optimismo, por receio de castigo dos deuses.
-"Se um dia Deus quiser,
Até com norte pode chover."
O fatalismo das gentes miseráveis tinha dado origem a toda uma mitologia de preceitos, preconceitos, tolhendo a audácia de muitos.
-"Lua nova trovejada,
Trinta dias é molhada."
Os intrépidos nautas de quinhentos não deram ouvidos a essas vozes, ou teria sido outra a história.
-"Relâmpagos ao norte, vento forte,
Se do sul vem, chuva também."
Como por bússolas, os temeratos regem as suas vidas pelos "dizeres", temerosos e regulados, sem desvios.
-"Entre os Santos e o Natal
É Inverno natural."
Mas também algo de útil sempre se soube colher destas tradições, reflectindo probabilidades frequentes se feitas de experiência, não encaradas como regras, nem traições.
-"Chuva miudinha como farinha
Dá vento do norte, mas não muito forte."

Capítulo 12 - Lúcido Mar

Nesta travessia das dúvidas, movimentos de luz sobre as águas, pontos de vista distante em líquido olhar sobre o chão, estaleiro de sonhos, vento, cordas e cabos de laborar, ruas e casas, Ana perscrutava o sentido do mar de Luciana e Luís, a luz e a lucidez.
-"Tendo o ferro a pique de estai, iça a vela grande e a de estai e continua-se a suspender, procurando arrancar, quando com a guinada do navio tiver posto o pano a grivar, porque ficou com a testa na linha do vento. Arrancado que seja o ferro, iça a bujarrona, aquartelando à proa para o lado contrário àquele para que se quer fazer cabeça e, tendo o pano cheio, camba e caça à proa, seguindo de ló ou como melhor convier. Sempre que for possível, deve-se fazer cabeça para o lado oposto ao do ferro."
Ana analisava este grupo - um tanto heterogéneo, que aqui singrava o mar, ao som cheio da voz calma de Henrique.
Luciana, estudante de artes plásticas; Luís, poeta; Henrique, marinheiro; Domingos, carpinteiro naval; Álvaro, estudante de arquitectura; Wirsung, psiquiatra; Ana, também médica.
-"Com o ferro a pique de estai e a água no bico, que é como quem diz quando a corrente da água vem pela proa, iça a vela de estai e, logo que arranca o ferro, mareia e segue com vento da popa, até estar em franquia. Depois orça, iça grande e bujarrona e segue de ló ou como convier."
Juntando as cores, o ar, a água, a madeira, as pedras, as mentes e os corpos, interpenetrando os seus elementos, todos em conjunto se ensinam e constroem uma escultura viva.
-"Navegando de bolina, dá-se mais em cheio, para adquirir bom seguimento. Pronto a virar por d'avante, mete-se o leme de ló, folga à proa e ala a retranca a meio. Logo que a proa esteja na linha do vento, aquartela avela de estai, camba a retarnca e amantilha-se a barlavento. Se o navio parar, pôr o leme a meio. Se cair a ré, pôr em revés. Quando tiver o pano cheio, camba à proa e caça, seguindo de ló ou como convier. Quando a proa está na linha do vento, folga-se o brandal volante e tesa-se o do bordo oposto logo que a vela enche para um lado."

Capítulo 11 - Henrique e Domingos

Seguiam os sete companheiros ao largo da costa, distinguindo-se ainda, ao longe, a Serra da Arrábida.
Henrique comandava a pequena embarcação à vela, ajudado por Domingos e Luís. Continuava as explicações, porque todos a bordo tinham de saber os rudimentos da navegação, "em caso de necessidade". Luís já se movia com desembaraço entre cabos e panos.
Tinham-se encontrado todos juntos, pela primeira vez, numa reunião do Partido, em que decidiram esta nova navegação.
-"A mareação do pano é a orientação dada às velas, de forma a conseguir o maior efeito para seguir avante. No pano redondo, tem-se como regra geral que a direcção da verga é a bissectriz do ângulo formado pela quilha e a direcção do vento. Nos barcos latinos, que têm as suas linhas de bolina muito mais cingidas ao vento, depende das qualidades náuticas do navio e, conforme têm tendência a aguçar-se ou arribar-se, assim se deve compassar."
Ana pediu que explicasse o significado desses termos.
-"Arribar é obrigar o navio a afastar a proa da linha do vento. Orçar é obrigar o navio a aproximar a proa da linha do vento. O navio é ardente ou vivo quando tem tendência para orçar ou para se aguçar, e mole quando essa tendência é para arribar."
Álvaro Urbano admirava estas precisões - aquele marinheiro até sabia o que era a bissectriz!
-"Diz-se que o navio vai mareado: à bolina cerrada, à bolina folgada, a um largo, aberto, à popa e à popa arrasada ou popa rasa, conforme o ângulo formado pela direcção do vento e o rumo a que se navega."
Wirsung reflectiu que para quem o habita, o navio é um ser vivo, extensão dos seus próprio corpos, com as mesmas propriedades, fraquezas e virtudes.
-"À bolina cerrada, é quando o vento sopra da amura, o menos aberto da proa. À bolina folgada, é quando sopra da amura até pouco para vante do través. A um largo, quando sopra do través. Aberto, quando sopra das alhetas. À popa, quando sopra de entre as alhetas. À popa rasa ou arrasada, é quando sopra de popa exactamente na direcção da quilha. Também se chama de borboleta, a dois ventos ou de tesoura, por, de regra, o barco amurar uma vela em cada bordo."
Luís ouvia esta sabedoria com um misto de orgulho e fascinação, contente de trabalhar na lide do barco.
-"Os navios redondos resistem à rajada arribando e os latinos orçando, mas navegando à popa, os latinos devem arribar também, ou manter o rumo, dando salto à escota, porque orçando perdem seguimento e arriscam-se a virar."
Para Domingos, esta sageza era familiar. Crescera com o seu som nos ouvidos, nas margens do Tejo, junto ao estaleiro em que já com o pai trabalhava, e em que nas viagens inaugurais dos navios que lhes saíam das mãos, iam como se com seus filhos fossem. Como neste vai.
Henrique passara a falar das manobras, citando as mais vulgares, começando pela de envergar o pano:
-"Um latino enverga-se impunindo primeiro o punho de amura, em seguida o da escota, depois o da boca e por fim o da pena. Fazem-se depois as coseduras ao longo das vergas em voltas redondas ou falidas e içando depois a carangueja; a pouco e pouco vão-se fazendo os envergues dos arcos, de cima para baixo. As velas de estai envergam por mosquetões ou colchetes, no respectivo estai. Engatada a adriça no punho da pena e feito o punho da amura, vão-se içando e cosendo, da pena para a amura, os colchetes, ou engatando os mosquetões nos ilhoses do gurutil."
Luciana fixava a beleza plástica destas operações, disparando frequentemente a sua máquina fotográfica.

Capítulo 10 - Ana e Wirsung

Procurando localizar Lovat-Erin, Wirsung descobre Ana, sua colega de profissão, exercendo no Barreiro, e com ela se encontra no Centro de Saúde de Setúbal.
Há alguns anos tinha escolhido esta cidade para morar, pelas semelhanças que lembravam outra, essa situada na plena pampa do Rio Grande do Sul. Esta é um pouco mais líquida, rodeada de azuis e areias, quase plana aos pés de castelos, o de Palmela sobre as alturas, ao lado deitada a plácida Arrábida de manto verde antigo e rasgado, banhado no verde renovado e claro com golfinhos. Afinal tão diferente da outra, gaúcha, muito plana e espalhada, sem encostas envolventes nem castelos, apenas húmida de charcos e lagoas, com cheiro de infância sobre cavalos em pêlo.
Se tão diversas, como associadas no espírito, por que paradoxal sentido o ar que nelas circula tem para Wirsung o mesmo sabor? Talvez o cheiro da beira do cais, esta de tons de maresia, aquela em aromas de couro molhado entre margens fluviais, a memória da liquidez das primeiras descobertas, dos segredos revelados, dos sentidos despertados.
Ana, natural de Angola, de rosto lúcido e quente, era bem como a tinha imaginado, sobre o som da voz de Lovat-Erin.
Falaram, naturalmente, das suas experiências, convergentes na diferença, como as cidades, Lisboa e Luanda, englobadas de triangulações de terras quentes - Brasil, Angola e Alentejo, 'Urbi et Orbe' de gentes, do movimento popular de libertação, de sonho e esperança.
Da alegria, ingenuidade e reacção, de canduras perdidas e precocidades desejadas.

Capítulo 9 - Barcos

Naquela tarde, Álvaro Urbano, de camisola de linha azul e de lacinho, trazia na pasta dois volumes que se apressou em mostrar a Luciana.
Um era um grande livro encadernado, sobre barcos, em inglês, com fotografias a cores, que tinha comprado na véspera.
Folheou-o, vaidoso, nomeando os tipos de embarcações: "clipper", "yacht", "cutter", "ketch", "yawl"...
-"Irra, que tu hoje estás um grande pedante!" - interrompeu Luciana - "Não sabia que também gostas de barcos, mas se queres saber alguma coisa que valha a pena, não precisas de gastar muito dinheiro: levo-te ao Henrique!".
-"Quem é o Henrique?"
-"Um velho marinheiro, que nos tem ensinado muito, a mim e ao Luís, em viagens à barra do Tejo. Não gostavas de ir?"
-"Nalguma "casca-de-noz"? Não, obrigado!"
-"E dizes tu que gostas de barcos! Logo vi, tu gostas é de ruas asfaltadas e de "arranha-céus"! Pois fica sabendo, meu lindinho, que te posso dizer mais do que aí encontras!"
"Relativamente ao aparelho, os navios de vela dividem-se em dois grupos: redondos, como a galera; e latinos, como o lugre. Os mastros, conforme a sua localização no navio, denominam-se de proa, de meio, de ré, podendo tomar o nome da sua vela principal: de traquete, grande, da gata ou da mezena. Além da galera, também são navios redondos: a barca, o lugre-barca, o lugre-patacho, o brigue e o patacho. Além do lugre, também são navios latinos: a escuna, o lugre-escuna, o palhabote, o iate, o caíque, a canoa, a bombarda e o bote de espicha."
Surpreendido, Álvaro resolveu atenuar a irritação de Luciana, que considerava demasiado voluntarista. Tirou da pasta de cabedal um maço de quarenta e duas folhas de "a-quatro" dactilografadas a dois espaços, e que dizia na primeira página "Narrativa da Planície".
-"O meu amigo brasileiro Wirsung, que é psiquiatra, emprestou-me este texto, que escreveu há pouco tempo, e eu pensei que seria interessante analisá-lo consigo."
Luciana abriu o exemplar e com curiosidade leu uma nota manuscrita no verso da primeira folha: "Nota de Entrada: Venho aqui buscar a força, apoiar o que tenho no fulcro desta página, fazer nascer a seiva mágica da escrita. Venho buscar a certeza, a esperança de sermos mais fortes de que estes muros, estas paredes velhas, que nos escondem a sua fraqueza para que acreditemos na espessura da muralha. (Parafraseando Anónimo do Séc. XX)"

Capítulo 8 - Brasil

No dealbar dos anos sessenta, os tais da outra história, já o menino Lovat singrava os atlânticos horizontes até às brasileiras praias. Pendurado à janela do navio atracado, agarrando nas sôfregas mãos o mundo trôpego das serpentinas do seu primeiro Carnaval, que de algures acima da vigia do camarote de segunda do Vera Cruz caíam, materializando a alegria na cidade do Rio de Janeiro.
Depois, ainda se lembrava do primeiro e escuro dia em São Paulo, a trepidante metrópole que lhe entupia os ouvidos de ruído e os poros de fina fuligem, tornando-se logicamente uma 'avis rara' para os novos coleguinhas, que chacoteavam dos seus desastrados movimentos, que rapidamente lhe continuaram a causar outras feridas, cedo lhe arejando o sangue.
Também aí a sua primeira experiência de fogo, a meio da noite acordado do sofá-cama e levado de esbugalhados olhos, balbuciando já na rua espantos, embrulhado em mantas, observandos das janelas do bonde as labaredas na fábrica e os vizinhos que cirandavam carregados de malas sobre o chão coberto de mangueiras. Também aí as primeiras políticas: a vassourinha do Jânio e a incongruência de Jango.
Em Santos, teve de frequentar um colégio de freiras, alternando o catecismo com a selvagem vida de rua, às pedradas aos moleques, trepando árvores e escalando muros. Acontecimento líquido de intensa euforia era a chuva de Verão, súbita e abundante, que deixava maravilhosas poças gigantes em que adorava conquistar a plena humidade.
Quando esquecia as lições de catequese e era castigado vingava-se, quer em sarcásticas imprecações do tipo "-Externato-carrapato: entra burro e sai macaco!", quer fazendo batota nas quermesses, de onde levava prendas sem pagar a senha. Bem feito, que o obrigavam a andar de calções azuis, camisa branca e lacinho, a cantar hinos, a fazer formaturas no pátio, e a ir de uniforme branquinho à missa, logo conspurcado na lama das bátegas, ignorando os sacramentos.
Lá ia aos poucos, de bilateral má vontade, sendo "civilizado dentro dos ocidentais bons princípios", com primeira comunhão e tudo, de vela na mão, valendo unicamente pelo encantamento dos acordes do órgão da igreja do Embaré...
Erin evoca sem pressa muitas outras recordações dos informais tempos que se seguiram, da vivência da liberdade dos Pampas, onde provavelmente ainda ontem Wirsung, o amigo, deambulava, observando, entre gritos do "quero-quero" e do "bem-te-vi", os darwinistas ninhos dos "joão-de-barro".

Capítulo 7 - Barreiro

Lovat-Erin passeava sem destino a sua figura de aventureiro pelas ruas tristes do bairro operário. Miúdos gritando em disputa de qualquer precária fantasia, por entre montes de lixo. Marginais combinando negócios e trabalhinhos, mulheres de rosto cansado. Acorrentados da solidão, lutadores de perdidas causas, reformados e doentes.
Lisboa ficou para trás, cidade das luzes coloridas, riso da noite até que dure, mas é aqui o ponto de partida dos sonhos, da aventura.
Sabia que não se prestava à luta colectiva, o seu campo era o dos sonhadores impacientes. Talvez ainda lhe batesse à porta dos sentidos a voz anarquista que em tempos o seduzira.
Agora, depois da desdita, desencantado e triste, soavam-lhe fracos os ideais de espinhosa concretização. Fora grande a desilusão, nada esperava da raça dominante.
Talvez devesse recomeçar aqui, neste meio operário e sujo, onde a mais bela flor nasce todos os dias. Por momentos sorriu com a ideia, mas mais uma vez o desânimo, sempre ele, lhe tolhia os membros, fazendo-o um boneco articulado, desprovido de agilidade.
Pensou irónicamente nos seus sonhos loucos de aventuras fabulosas, sabendo que nunca seria capaz de mexer um dedo para arriascar o que fosse.

Não o guardou porém esse comportamento de perder algumas coisas, levadas pela voragem da vida, sem que pronunciasse um não. A sua progressiva auto-desconfiança tinha-o transformado num taciturno, de lacónicas e titubeantes palavras e gestos, sem a cor e o brilho de antigamente.
Sentia que a atmosfera em que agora se movia era constituida por qualquer inerte gás, polvilhada de um qualquer pesado metal, em que respirar se tornava difícil, levando-o a tropeçar na espessura árdua do seu desalento, arrastando a fantasmagórica imagem do "cavaleiro da triste figura".

Capítulo 6 - Biografia Breve

Era Agosto de 81, e de tão distante o olhar que simultaneamente ver se poderia o pássaro e respectiva sombra, Lovat-Erin julgava agora ser possível objectivar o seu passado:
A primeira fuga de miúdo, para o Campo Grande, aventura acabada pelos braços de varina lisboeta que o devolveu a casa, para de seguida despedaçar os 'Reader's Digest' do pai, pregar partidas várias, grandes sustos à mãe, e desatar a correr em liberta travessia sem rédeas o asfalto da Avenida de Roma.
No aspecto apenas os olhos rebrilhavam, denunciando malandrice: bonézinho e calções azuis da Camisaria Primaz, não fosse o desprender-se em sonoras gargalhadas, ninguém o diria autor de vingativas actividades, ou da sua tendência para o escândalo público, além da manifesta agressividade subversiva de sub-reptíciamente lançar pedras da calçada aos automóveis que circulavam, aproveitando qualquer momentânea distração materna. Cheio de habilidades manuais em vandálicas utilizações, era porém ajoelhado que pedia ao Menino Jesus um carro de corridas, tratando depois os brinquedos com um misto de curiosidade e violência criativa, em inevitáveis destruições, à descoberta dos segredos do interior dos comboios eléctricos. Declarando querer vir a ser pedreiro, com autêntica fascinação, repetidamente por outro lado se entregava mais uma vez à utilização escaqueirante de enxadas, terrível forma de arreliar o avô. Sabia assustar os primos inventando à noite activos roedores, simulando os seus ruídos. Gostando também de fortes emoções, desceu íngreme ladeira em carrinha destravada, com espantosa imunidade às consequências. No supremo requinte da malvadez chegava a aterrorizar as galinhas e pintainhos que apanhasse ao pé de futebolar. Foi talvez num desses transes que se assustou, passando então à faceta de menino copo-de-leite, alfacinha de Entrecampos, abandonando a incipiente "laranja-mecânica".
Os deleites poéticos nasceram, passando a apreciar o bucolismo dos rebanhos, surgindo aperplexidade ao observar os barcos de brinquedo dos rapazes pobres, com velas de lenços de assoar, lançados nos lagos do Jardim da Parada. A canção predilecta: "Lisboa, Cidade Amiga,/és meu berço de embalar;/ensina-me uma cantiga/das que tu sabes cantar.//Uma cantiga singela,/daquelas de enfeitiçar,/para eu cantar à janela/quando o meu amor passar." Dessa altura também os primeiros livros, do "João Ratão", quando estava doente, e que saboreava lentamente na paz do quarto, ao lado do espelho. A primeira disputa escolar, envolvendo um Sporting-Benfica, toldou-lhe a imaginação para modelar o seu barro, que acabou por ficar surpreendentemente em feitio de pão. Fazia do bilhete de comboio da linha uma hélice no Verão da praia de Carcavelos, profetizando futuros aviões. Ainda as canções de amor eram as preferidas: "Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora...". Romântico, já até das facas de cartão dos palhaços do Coliseu medo tinha. Já a saudade também o impelia a indagar todos os dias o carteiro de campo de Ourique por cartas do pai. Inventava alternativas para as adivinhas clássicas, quando ao encontro dos seus seis anos vieram os profícuos anos sessenta, mas isso é já outra história.

Capítulo 5 - Lovat-Erin

Quase sempre foram solitários os pensamentos de Lovat-Erin. E rápidos, quase inexistentes. Quase sempre filhos da deformação solipsista da introspecção, quase nunca fruto do diálogo criador da polémica colectiva.
"-Não é bem o diálogo com uma muda folha branca de papel que desejo!..."
Para Lovat-Erin, a simpatia estética seria sempre origem de contemplação. Quando muito transformada em auto-contemplação. O que havia de admirável nele? Seria a beleza uma imagem-delícia para o deleite eterno? Ou o ponto de partida para conquistas de outro tipo de beleza? A beleza do movimento, do anti-estático, do anti-contemplativo, do anti-empedernido, do anti-esclerose, da transformação permanente.
Já alguém, um dia, lhe dissera que ele tinha crescido. A beleza de crescer. Lovat-Erin gostava de saber se capítulo após capítulo, alguma coisa nascia. Gostava certamente de saber se poderia lançar à sua volta algo que valesse a pena. Mas não seria poesia, poesia nunca mais! Seria a negação da poesia. Pelo menos, como Lovat a entendia. Tudo, menos a contemplação. Qualquer coisa de duro. Do real obrigatório, que é, parafraseando Júlio Verne, a verdade mais forte que os factos, o imaginário.
Lovat-Erin acreditava no sonho como fonte de movimento, agente de transformação. Como a Pedra Filosofal, do Gedeão. Assim a beleza do imaginário se transmutava em aventura. O sonho consciente, criador. "E pur si muove!" E porquê não um livro de sonhos inexplorados como ponto de partida? É certo que essa obra, apenas um marco, ponto fulcral de aplicação das palavras-alavancas, tem sido penosamente arrastada pelos anos de incerteza. Mas nisso também reside a sua virtude, pois não pode a certeza ser a mãe da ambição.
Lovat-Erin gostava de um dia poder escrever no painel da sua face, então aberto à felicidade: "LIVRE"! (Sem aspas...)
Mas na verdade sentia-se preso ao seu próprio passa do. Não em demasia, mas algo preso, e não bem no passado, mas ao hábito dos seus preconceitos. Ou melhor: preso ao comodismo da superprotecção. Preso ao medo de se sentir mal com a ruptura com todo o 'status quo ante'. Da insegurança que sentiria, da que já sente ao imaginá-lo. Uma reacção de adolescência muito, muito tardia.
Mas isto, tudo isto, não vale a pena lançar à sua volta, pensa Lovat. Isto destina-se apenas a uma pessoa. Apenas a alguém que queira conhecê-lo melhor. E só depois que consiga compilar todos estes pequenos fragmentos de pensamento. Depois de lhes dar uma sequência, se não cronológica, nem lógica, pelo menos psicológica. Terá? Se não tiver, será de facto necessária? Se sim, para quê e para quem?
"Não é nesta idade que se fazem estas perguntas" diz o psicólogo de gravata, "é um processo de auto-destruição" diz o psiquiatra estabelecido no 'stablishment'.
Mas a verdade é que Lovat-Erin continuava a pôr-se em causa continuamente, e questionava: "Porque fujo eu aos problemas, é normal fugir? O que é normal, e fugir? É preciso ser normal, e para quê? O normal existe? Fugir será? Sim, sim, sim!"

Capítulo 4 - Surrealista

Virado na leva dos mares presos, soltos os ventos folgados em silvo, viajo no dorso da fagulha ígnea dos teus seios. Brando a maré que agitas nos portais, pelos folguedos matinais da sombra, pelas fendas cobertas de musgo, molhados e vivos, os nossos.
Cravamos os crâneos dos crápulas, de credenciais credoras de crentes, abúlica a erva sagrada do pio papa do ópio, arábica goma do ódio. Elástica de mastigar o losango da métrica medida da morte, as bíblicas toupeiras de Jericó, sepultadas nas ruínas da muralha bamba, não mortalha de papel de cigarro, espetadas no portal da minha terra, dos outros que nada têm a ver comigo nem eu com eles - raios os partam!
Lugar me fica no infinito dos sóis pendurados dos tectos, pois lúdicos são os lupanares do marasmo, 'panem et circensis' da vontade, folgados os tiranos no ripanço de séculos decadentes, impados à força de estalar os vagidos tolos de tartufos, suando a hipocrisia farisaica. Estavam os brutos observados à esquina pelos livre-pensadores, e por baixo germinavam nas lamas as levas da inúmera prole, gemendo as larvas: "- Vamos beber uma "mini"!"... Em bica aberta suam os escravos da boca fechada, de olhos abertos colados à sede calada.
O parto esperado. A manhã espantada de perto, a breve força de te esperar. O terceiro grito, à terceira voz. Gravadas as plantas nos pés das minhas débeis árvores, as folhas desfolhadas caídas ao teu lado, lambido o doce tronco dos musgos secos, ouvia a lenta e breve luz do encantamento. Arranco agora as trancas, aos trancos nos barrancos da incerteza segura, usando a espora que preciso, a espada, não posso ficar à espera. Estrado fincado em força, forço a estrada sem ficar só andando. Cantando.
Lançada à água a virgem pálida da minha parvoíce, tenhamos a esperança de que alguém venha violar a mansidão, abrir a porta à corrente de ar fresco.
Sento-me, por volta das cinco da tarde, não para tomar chá - talvez o gin-tónico, mas porque já tarda a chama aberta, e porque te queimei hoje, nos lençóis da torre. Vigiado pelas vigias na viagem às minhas ameias, encimadas no castelo dos meus meus andares esquecidos, andei chegando sem medo, às armaduras e quejandos, de canhões entupidos. Pelos vinte minutos entrei e acordei, envio-te a carta de espantar as pedras, espalhando as brasas nos meus espalhafatosos bolsos de espanta-raposas, duvido das goelas de guelras em garra, dividem-se as gambiarras aos gemidos, e às dez prás seis do outro dia decidam:
-"O meu surreal só agora descoberto, surrado pelo mofo-aranhal-de-teias, embasbaca os palavrentos cabeças-de-chapéus-tontos, na margem dos abismos loucos, e bem seguro de estar dentro da estalada, estalo a língua no sabor dos escândalos. Os materiais com que me sujo e rompo, que me ferem e amo, foram sempre o motivo, a solidez assente. As seculares regras de parecer-mal-e-bem, esfaqueio-as bem no centro!.."

Capítulo 3 - Urbano

À saída das aulas, fizeram-se amigos à porta da Escola Luciana e Álvaro Urbano, estudante de Arquitectura.
Após a breve pausa que se seguira às primeiras trocas de impressões sobre cursos que poderiam ser parentes próximos, a Arte em múltiplas formas, ele recitou-lhe um fragmento de poema do seu homónimo Álvaro, de Campos heterónimo: "A certos momentos nossos de sentimento-raiz / Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta / E, sem que nada se altere, / Tudo se revela diverso."
Seguidamente, novamente após breve pausa em que caminharam calados e distraídos pelas ruas de Lisboa, dissera-lhe, comentando as descobertas, que todas as nossas Odes Marítimas partiram da libertação do entusiasmo, e este fazendo fulcro na força de acreditar na Beleza.
Andavam nessa altura um tanto enredados na definição de Estilo e Escola de Pintura. Ou melhor: nas respectivas caracterizações.
Álvaro desdobrou para a amiga a tessitura que edificara no seu espírito, tentativa de ordenação dessa complexa Torre de Babel, tendo como critério definidor a característica a seu ver dominante em cada forma de expressão plástica.
Em linhas de força, dispunha as escolas e os estilos, traçando, como no cavalete, a perspectiva, ou talvez a sua esquemática ilusão:
-"A composição, em Cézanne, definia o Formalismo; o ar e luz em Monet, o Impressionismo; a sensação, em Van Gogh, marcava o Expressionismo. Em Kirchner, dominava a cor; em Matisse e outros Fauvistas, a linha. Com o Cubismo, em Picasso ou Braque, se entrava em decomposição analítica, como que fechando o ciclo da espiral que precede o actual.
"Nesse desenvolvimento, o Futurismo privilegia o movimento, como em Boccioni; o Neoplasticismo dá o primado à geometria, como é notório em Mondrian. Já o Construtivismo de Malevitch exalta a pureza, enquanto o Dadaísmo expressa o protesto – veja-se Duchamp, Arp, Kandinsky.
"Mas a inspiração do subconsciente volta a ter foros de cidadania com Dali, Klee e Chagall, erguendo o movimento Surrealista.
"Assim, como que em reacção, surgiu a Arte Concreta, com predomínio das formas, podendo citar-se Van Doesburg. Um expoente de outra corrente paralela – a Arte Abstracta, contemporânea da anterior, como soe nas coisas correlativas, foi Herbin, com as suas normas geométricas. Entretanto, com Estève a arte abstracta torna-se decorativa, pois as expressões são não-figurativas, de cor e forma.
"Mais ou menos sempre ligadas aos movimentos de ideias, as várias correntes têm-se sucedido, quer com hiatos, quer sobrepondo-se, veja-se o exemplo do Realismo Socialista, da Pop-Art, da Op-Art de Vasarely, do Neo-expressionismo, a "action painting", os "happenings"..."
Nessa altura Luciana interrompera-o subitamente:
-"Pouco me importam Academias, sejam Helenísticas ou Góticas, Românicas, Barrôcas ou Bizantinas. Arte Grega ou Arte Nova, Classicismo ou Maneirismo, Luminismo, Intimismo, Naturalismo, Pontilhismo, Romantismo, Informalismo, Simbolismo, Ingenuismo ou Realismo, todos os "ismos" que quiseres! Junta-lhes também a todos ora o prefixo "neo" ora o prefixo "post" e terás sempre uma reserva de rótulos, permitindo óptimas classificações prenhes de designações "lagartixiformes"!
"Mais do que a definição de estilos, mais do que saber se há gestualismo ou automatismo, se há vorticismo ou sintetismo, se é não-figurativo ou se existe neo-figurativismo, o que verdadeiramente me interessa, destrinçando-o entre todas as formas, ecléticas ou "naives", em que insistentemente vacilamos - "Minimal Art", Arte Cinética, Arte Conceptual, Renascimento ou Rococó - é dominar todas as técnicas, descobrir os valores "tácteis", seja por "cloisonnisme", seja por colagem, aguarelas ou serigrafias, em mosaico, em claro-escuro ou perspectiva-e-ponto-de-fuga, tudo o que possa tornar possível a prática da vivência criativa!"
Urbano ouvira espantado este jorro impetuoso, tentando compreender a aparente e súbita fúria da amiga. Pediu-lhe que tentasse exprimir os seus desejos, mais do que os objectivos, para que se clarificassem as razões, pela táctica do flanco.
Luciana disse-lhe, então calma, sem espasticidade:
-"Gostava de ouvir fluir a minha voz como um solo de saxofone, em líquidas notas de veludo banhando a textura das palavras. Como quando soltava o pensamento à procura do sentido na fala imediata aos sentidos. Como a liberdade de respirar, andar até doerem os passos, na natural sequência de não ter de deixar marcos no caminho."
Urbano quedara-se, pensativo, meditando como aos artistas lhes falta o sentido prático da vida, impondo aos seus voos as fronteiras de que se lamentam, sempre aquém daquele "golpe de asa"...

Capítulo 2 - Luís L.

Luciana lembrava-se como Luís L. a tinha apoiado quando lhe apresentou as dúvidas que tinham surgido, sobre as eventuais dificuldades que encontraria quando ingressasse na Escola de Artes Plásticas.
Sabiam que defrontaria preconceitos muito arreigados, até mesmo os seus próprios, mas incorrecto seria renunciar às suas tendências artísticas, recusar a expressão mais ampla da sua sensibilidade estética, apenas porque à sua frente certamente veriam levantar-se, pelo menos, o machismo e a comiseração paternalista, ambas afinal faces da mesma moeda, olhar de pretensa superioridade sobre os seres diferentes, daninha erva presente onde quer que se veja surgir alguém capaz de criatividade.
Luís dissera a Luciana ser esse combate inevitável, pelo que ela só teria vantagens em travá-lo no campo da sua escolha.
Lembra-se de como passaram então, já decididos, a analisar aspectos "técnicos", os que lhes pareceram mais relevantes.
Por exemplo: seria a natureza dos materiais a determinante da selecção dos artistas segundo o seu sexo? Concretamente, a questão levantava a perplexidade: a razão da maior percentagem de pintoras do que de escultoras teria algo a ver com a dificuldade de manejo da dureza das matérias escultóricas? Tal facto teria algo a ver com a cultural aptidão, secularmente desenvolvida, para a destrinça das tonalidades cromáticas, mais tradicionalmente veiculada à mulher?
Por outro lado, a predominância masculina de escultores poderia explicar uma característica que sempre notara: a dominância das formas do corpo da mulher e a paralela exaltação da virilidade, quer uma quer outra, quantas vezes por indefinida moda, ou por ambígua encomenda.
Na Antiguidade Clássica os belos corpos masculinos da estatuária grega não eram produto da sensibilidade nem do olhar femininos. Onde a Escultura Feminina?
Aí Luís protestara: a sensibilidade convencionalmente qualificada de feminina não era exclusiva das mulheres!
Luís lembrara que poderiam enquadrar nessa análise aquela citação do Ricardo Reis: "O que distingue a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudo clássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda que ao senti-lo; e a disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de certo nível. A arte pseudo clássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é uma harmonia".

Capítulo 1 - Luciana

Luciana d'Arouet recorda as origens da fascinação pela expressão plástica. Situava a memória na visita à casa-museu da senhora Haydée R. B. .
Aquela cidade de província gaúcha, longinquamente plantada na perene verde planície, junto à fronteira do Uruguai, era por vezes transformada em horizonte líquido, esparsamente povoado por quadrúpedes, aqui e além por rebentos vegetais, em tranquila quietude, nalguns pontos pantanosamente traiçoeira.
Lembra-se de como nos seus quinze anos o olhar de então se demorava no mistério das definições cromáticas, tão diferentes da rebelde paisagem das pampas.
A transposição dessa rebeldia natural revelava-se seguramente mais difícil do que a identificação das nuances do pôr-do-sol.
Recorda também como a velha senhora enumerava as obras, citadas no Dicionário E. Benezit, quadros adquiridos nos seus “áureos tempos”, directamente comprados aos artistas, o que fazia sempre questão de sublinhar.
Aos poucos alinhava os nomes, envoltos em névoa, mitificados pelo tempo de adolescência, de algumas telas, 'hors concours', trazendo associados mágicos nomes de deuses, vulgarmente chamados artistas: "Un ami de jeu" de Chocarne Moreau, "L'Impatient" de Alcebíades Landini, "Anxieté" de Georges Maroniez, "Quietude" de Aspard Migl, "La neige sur la plage de Vissant" de Me. V. Demont Breton, "La Servante" de Albert Lynch, "Létang du Pére Laguette" e "Route de Giannié" de Maurice Moisset, "Pendant la messe" de Teodore Boulard...
Entre os anos de 1928 e 1930, alguns teriam sido medalhados no 'Salon' de Paris, outros ainda teriam sido destacados com a "Legion d'Honneur".
Nessas telas, que provavelmente tinham constituído a sua iniciação nas artes plásticas, fora sem dúvida “o Belo” que a fascinara, mas também o aperceber-se de uma forma de tornar o caminho de aproximação entre os homens mais curto – como soube depois que Claude Roy dissera.
Só bastante mais tarde, cerca de dois anos passados sobre essa visita, já de volta à multissecular Europa, já longe do Novo Mundo, deu por si a estruturar a sua consciência estética, a tentar definir os contornos da "ciência do Belo".
Desenvolvendo variações sobre o tema, multiplicando as facetas para obter a imagem da complexidade, naquela época escreveu Luciana no caderno de apontamentos do Liceu:
"Na estrutura do Belo, forma e significado constituem um todo indissociável. Porém, a dificuldade em caracterizá-lo resulta de ser função de múltiplas variáveis, ou seja: significado e forma, emergindo de e convergindo sobre um sujeito complexo, transformam a forma apreendida em significado.
O objecto da intuição, mais do que um conceito, parece haver de nos ficar sempre algo, que resiste à análise definidora. Objecto que pelas já referidas características próprias pode produzir no espírito uma emoção, que chamamos estética, ou melhor: uma reacção de agrado, admiração, identificação.
Independentemente do vago e paradoxal sentido destas impressões sobre a "tábua rasa" da mente, o que parece produzir a impressão de beleza é a convergência dos elementos, levando à impressão de conjunto, de harmonia.
Mais polémico é no entanto aceitar-se que o Belo se ofereça aos seus fruidores de forma directa e imediata, na sua totalidade significante, o que implicaria a natureza intuitiva. Essa intuição poder-se-ia definir como percepção sintética, ou global, do conjunto dos elementos e da dialéctica das suas relações."
Culminando estas iniciais e trabalhosas considerações, caldeadas nas ideias dos pensadores clássicos, Luciana situava a elaboração da questão fundamental da Arte, tal como a via na altura:
"O que mais importa não é identificar-se com a técnica, ou linguagem, de que se serve, mas servir-se destas para exprimir algo mais, não devendo o artista limitar-se a copiar. Terá de recriar.
E ao recriar a realidade por meio da arte, há de procurar sugerir o autêntico e exprimir o significativo, como meio de consciencialização social. Aqui se coloca a questão valorativa, a ética da promoção do Homem.
A Arte seria então factor de aprofundamento e esclarecimento da Vida. Ambas as vertentes, ética e estética, têm no Homem a sua raiz, ambas visam aos valores humanistas, objectivo último."
Assim via Luciana que nessa melancólica recordação, talvez de um modo inconsciente, subterrâneo e sincrético, se tinha originado o seu actual interesse pela problemática artística.
Aí via a fonte da "vocação" que sentia, da vontade de aprofundar os conhecimentos, apelo que pensava concretizar na Escola de Artes Plásticas de Lisboa.
A criação artística, trabalhando os temas, as vivências, as técnicas de expressão, através da sua condição 'sine qua non' – a imaginação – era o seu objectivo, a sua angústia, a sua luta.
Mais do que as condições da investigação e da invenção científicas, parecia a Luciana necessário à Arte, além de factores como a carência cultural e o seu nível de desenvolvimento e complexidade, e de condições como a curiosidade e a reflexão, acima de tudo o poder da imaginação, a criação e a projecção de imagens reprodutíveis, geradoras de espanto e clareza.
Sobre os factores da invenção, da criatividade, tinham vindo ao seu encontro contribuições de alguns professores, apontando os sociológicos, como a necessidade do meio social, a liberdade e o factor económico, nitidamente actuantes sobre vectores pessoais, como a condicionante genética, o espírito de curiosidade e crítica, imbuídos estes, inevitavelmente, do omnipresente afecto.
Mas seriam só esses os meandros da criação? Ou haveria algo mais, permanecendo indecifrável, apenas individualmente e intransmissivelmente inteligível?
Era o que Luciana decididamente perseguia, com a persistência tenaz dos deficientes motores, com a delicadeza e naturalidade das danças dos camponeses de Brueghel.